O Cidadão e a Construção
O talento
nacional conseguiu produzir canções que retrataram o cotidiano do brasileiro de
modo tão fidedigno que acabaram eternizadas. Embora longe da lista das mais
tocadas do momento, certamente estão presentes em nosso imaginário e na boa
discoteca. Duas delas merecem especial destaque. Lúcio Barbosa nos brindou com
“Cidadão” gravada por Zé Geraldo em 1979 e depois regravada por Zé Ramalho e Silvio
Brito entre outros. A música enfatiza o
sofrimento de um trabalhador com as precárias condições de trabalho e certo arrependimento
por ter deixado a seca da região norte para buscar melhor sorte na região mais
desenvolvida do país. Em seu lamento ele destaca que ajudou a construir
edifícios e colégios, onde não pode sequer parar para contemplar e onde seus
filhos jamais poderão estudar. Sua esperança é participar das atividades da Igreja
e ser consolado pelo próprio Senhor, que também construiu o universo, mas
diariamente é excluído da vida das pessoas. Entre suas pérolas, em 1971, Chico
Buarque gravou “Construção”, onde apresenta a história de um anônimo operário
da construção civil que engrossa a triste estatística de mortes por acidente no
trabalho. Além do requinte e ousadia no
processo de composição poética e melódica, Chico enfatiza a crítica a sociedade
capitalista que reduz o homem à condição de máquina. Ao narrar o último dia de
um trabalhador que ama sua mulher, beija seus filhos, se dirige ao canteiro de
obras onde constrói paredes sólidas, come feijão com arroz e cai de um andaime
precário, ele encerra com o corpo que se transforma em um pacote flácido que
atrapalha o trânsito. Estamos iniciando mais um ano, época de reflexões,
planejamento e desejando mudanças. Nosso país experimenta uma explosão
produtiva em vários setores, destacadamente no mercado da construção civil.
Ocorre que os dados apontam a média anual de mais de 700 mil acidentes no
trabalho, principalmente nos canteiros de obras. Reverter esta situação deve
ser uma meta perseguida por autoridades, sindicalistas, empresários e toda
sociedade em geral. As mortes no trabalho não podem servir apenas como
indicadores em mapas estatísticos, nossa capacidade de indignação não deve se
restringir a reclamar do trânsito que fica interrompido quando se está
prestando algum socorro às vítimas dos intermináveis desmoronamentos.